domingo, 16 de agosto de 2015

ENTRE TRILHOS/TRALHAS: APROPRIAÇÃO ESTÉTICA COMO RESISTÊNCIA POLÍTICA (em memória aos ipês mortos pelo bem da copa)




Morgana Moreira Moura




No meio do caminho tinha um VLT
Tinha um VLT no meio do caminho
Tinha um espectro-VLT
No meio do caminho tinha um VLT.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Dos ipês mutilados e arrancados.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha um VLT
Tinha um espectro-VLT
Tinha um VLT no meio do caminho
No meio do caminho só tinha pedra.



CENA 1 – a copa do mundo é nossa
        Em outubro de 2007, o Comitê Executivo da Federação Internacional de Futebol (FIFA) confirmou que o Brasil sediaria mais uma copa do mundo após mais de cinco décadas. Antes da copa efetivamente, a candidatura começa com quase 10 anos de antecedência. Primeiramente, organizam-se os países por regionalidades conforme o rodízio continental estabelecido pela FIFA. Na América do Sul, quais seriam os países aptos a sediar tal mega evento? Em 2003, a Confederação Sul-americana de Futebol (CONMEBOL) anuncia Argentina, Brasil e Colômbia como candidatas à sede do evento em 2014. Todavia, após novas votações, as confederações vinculadas a CONMEBOL decidem em unanimidade o Brasil como seu representante em 2006.
        Após quase dois anos de visitas a diversas cidades brasileiras, vistorias de estádios, possibilidades de acomodação, segurança e demais infraestruturas. Ante as promessas de melhorias em todo o país, o Brasil é confirmado como país-sede desse megaevento esportivo. A copa do mundo é nossa!


CENA 2 – copa do Pantanal: chegada de um rebento para modernização do Mato
        Depois dessa declaração de conquista da sede, o Brasil continuou um processo de eleição, agora interno, entre cidades pois nem todas as capitais teriam o ‘privilégio” de serem consideradas cidade-sede.
       Após batalha entre o estado vizinho Mato Grosso do Sul (tantas vezes confundidos entre si pelos próprios brasileiros), Cuiabá ganha de Campo Grande na disputa por um lugar e agora a copa passa a ser do Pantanal.
     Como receber um megaevento assim? Qual estrutura devemos oferecer aos convidados? Como uma senhora que arruma a casa para receber uma visita ilustre, Cuiabá começa sua faxina, transformando-se em um canteiro de obras vivo.
     Além das ações voltadas para o ecoturismo, prédios novos, viadutos em prol da modernização e do embelezamento de uma cidade que com seu belo ar interiorano, se deparava angustiada com a exigência de um crescimento nos moldes JK (50 anos em 5). O dispositivo mais divulgado foi o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), considerado como modelo de transporte do futuro, seria a “solução” do transporte entre as cidades vizinhas Cuiabá – Várzea Grande (todo o processo de implantação e construção do VLT pode ser visto na página http://www.cuiabamt300.com.br).
    Para construir essa maravilha da modernização do Mato, foram necessárias desapropriações para alargamento e construção de estações, devastações de árvores muitas delas nativas do cerrado como os ipês que gritavam beleza com suas vivas cores no período da seca.
      A copa começou, as visitas ilustres chegaram, mas a casa não estava arrumada. A festa aconteceu, a copa acabou, o Brasil perdeu, as visitas partiram e a casa continuou desarrumada. Mas agora parece que não há mais um por que arrumar. Os (pseudos) trilhos do VLT seguem rasgando as cidades sem previsão de quando receber um trem. Os viadutos seguem rachando, sem uso pelos riscos que oferecem. As casas seguem desapropriadas. E os ipês arrancados seguem como fantasmas na saudade daqueles que lamentam suas flores que nunca mais cairão para colorir os agostos cuiabanos.

CENA 3 - A ocupação como resistência: (re)existir (aos)com os trilhos

I)
     Inquietos por esse cenário, alunos do programa de pós-graduação em cultura contemporânea (ECCO) da Universidade Federal de Mato Grosso articulados as propostas do Coletivo À Deriva (https://www.facebook.com/pages/Coletivo-%C3%A0-Deriva/255646701141126?fref=ts) viabilizaram uma intervenção cujo propósito era dar visibilidade a esse esquecimento, descaso das obras abandonadas, sem posicionamento dos governantes quanto as medidas que serão tomadas para arrumar a casa, que segue suja e desarrumada.
     Assim, em julho de 2015, os alunos se implicaram em organizar a apropriação do viaduto da UFMT, obra inacabada que seria uma das estações do VLT. A ação consistiu na comemoração de aniversário de um ano de um aniversariante que não veio, titulada VLT – Vozes Livres sobre Tralhas. E com vela, balões, bolo, chapéus, instrumentos musicais, cantoria, malabares, painéis desenhados pelos alunos com as estações e os trens, apropriamos do viaduto inacabado, caminhando pelos trilhos que já em ferrugem remetem a um descaso daquilo que se perde com o tempo.
        Os carros passam, buzinam, gritam estímulos ou dissabores, resistimos. Convidamos a participarem da festa: - o aniversariante não está, mas podem entrar! Muitos carros param, recebem os brigadeiros distribuídos, param o trânsito, o viaduto é nosso, a cidade esquecida é nossa, interferimos seu fluxo com brigadeiros. Mesmo que por alguns minutos, fugimos a disciplina da arquitetura urbana, que controla fluxos, corpos, numa estratégia biopolítica (FOUCAULT, 2009).

foto: arquivo Vozes Livres Sobre Tralhas



II)
       Em apropriação urbana anterior (Sombras que passeiam), Azevedo (2013), resgatando Deleuze e Guattari, descreve a cidade enquanto um sistema regulado pelas produções, pelas relações de trabalho, valores de consumo, relações midiáticas e burocratizações que empecilham os fluxos cotidianos. Cidade-controle essa que implica nos processos de subjetivação, nos modos de ser, sentir, pensar. Que aniquila a potência de ação da vida, e muitas vezes aniquila a vida mesma (podemos pensar aqui as chacinas urbanas de crakeiros em prol de uma higienização). Nessa cidade-controle, Azevedo (2013) destaca as intervenções artísticas como possibilidade de “engendramentos de devires singularizadores que nos aproximam da vida” (p. 139).
         No modelo neoliberal, Hardt e Negri (2014) descrevem a cidade como sendo a sede da produção biopolítica onde o controle se dá em maior intensidade. Todavia, eles pontuam que essa também é potência de resistência ao possibilitar encontros que, apesar dos desvios e barreiras de concretos para evitados, se dão em terrenos de afetos, conhecimentos e desejos.
        Ao mesmo tempo em que vemos a cidade-controle num movimento de expropriação do comum, dos encontros efêmeros, dos afetos, dos ipês. Vemos emergir como potência, uma cidade que resiste a esse controle neoliberal por meio das ações artísticas. Mas a cidade só se configura como potência a partir do momento que nos apropriamos dela e resistimos a esse controle, a essa expropriação.
    No que diz respeito a esse legado da copa, Galindo, Lemos e Rodrigues (2014) resgatam Agambem para descreverem que a Copa de 2014 serviu para a criação de um estado de exceção “no qual as regras do Estado Democrático de Direito são deslocadas sob a insígnia de um sacrifício em troca de investimentos”. Ou seja, a firmação de uma violência em prol de um bem comum. Desapropriações, devastações, em prol da segurança, modernização e mobilização, tornando vidas invisíveis, descartáveis.
     Ao apropriarmos da cidade, resistimos a esse estado de exceção. Fazer da cidade lugar de potência e dispersão dos mecanismos de controle e segurança neoliberais é para um movimento ético, estético e político, “vital na produção da liberdade no presente” (LEMOS, GALINDO, AGUIAR, 2014, p.207).
     Rena (2014) descrevendo a relação entre arte, espaço e biopolítica resgata a importância das ações artísticas no cenário urbano como produtora de subjetivações libertárias, criativas e potenciadoras. A arte trabalhada na cidade como processo criativo, colaborativo e horizontal atuando na constituição do comum contra a prática do capitalismo.
    Como Azevedo (2013) e Rena (2014) descrevem as potencialidades das apropriações poéticas no cenário urbano, a ação Vozes Livres sobre Tralhas atuou como um potencializador da cidade ao apropriar desse cenário, antes de controle e disciplina. Convidando os motoristas a colaborarem dessa ação ampliou ainda mais o ato de resistência à cidade-controle, aniquiladora. Parando o trânsito com brigadeiros interferimos em seu fluxo contínuo de controle.
       Colorir os trilhos cinzas com malabares, balões e músicas implicou numa (re)existência (aos)com os trilhos, uma ação de implicação ética, estética e política (GUATTARI, 2012). Ética no sentido de propiciar o encontro com o outro, com o comum, ampliando as territorialidades, acompanhando o movimento coletivo do desejo. Estética por engendra-se pela diferença, pelo singular, por subjetivações que se encontraram em discursividades vocais, musicais, plásticas, circenses, propiciando assim rupturas ativas, processuais. Política por pôr em questão a problemática da economia do desejo, pôr em questão a cidade-controle em oposição a cidade-potência.
Sabemos da eficácia das intervenções poéticas como mobilizadoras da cidade-potência. Quantas ações mais podemos realizar para potencializar a cidade, problematizar as tralhar de copas deixadas ao esquecimento, resgatar as lembranças vivas dos ipês mortos em prol de um bem maior num estado de exceção?

Foto de arquivo pessoal - ipê branco na Praça da República


"A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis à sua vocação de beleza" (Rubem Alves)



AZEVEDO, M. T. O. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade.  Revista Magistro, v. 8, n. 2, p. 138-146, 2013.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2009.
GALINDO, D.; LEMOS, F. C. S.; RODRIGUES, F. X. F. Copa 2014: a produção biopolítica de uma cidade onde a exceção se tornou a regra. Psicologia Política. v. 14, n. 29, p. 87-99, 2014.

GURATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: editora 34, 2012.

HARDT, M.; NEGRI, A. Declaração. Isto não é um manifesto. São Paulo, Editora n-1, 2014.

LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D.; AGUIAR, K. F. Ao coração das cidades: notas parresiastas às práticas securitárias a ao des/arquivamento como resistências. Rev. Ciências Humanas, v. 48, n. 2, p. 204-223, 2014.

RENA, N. Arte, espaço e biopolítica. Interdisciplinar, n. 2, 2014. Disponível em http://blog.indisciplinar.com/arte-espaco-e-biopolitica/, acesso em: 16 de jul. 2015.

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